Desde o caso paradigmático de Valença do Piauí, o TSE tem adotado a política de “tolerância zero” ao analisar candidaturas fictícias
Por Maitê Marrez
A Lei n.º 9.504/97 prevê desde 2009 que “do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo” (§3º do art. 10).
Tal avanço normativo não foi suficiente para que houvesse um aumento no número de candidaturas femininas viáveis e, consequentemente, de mulheres eleitas. Os partidos políticos cumpriam o requisito legal apenas formalmente, indicando candidatas que ou não tinham interesse em concorrer (e às vezes nem sabiam que seus nomes foram escolhidos em convenção) ou não possuíam chances reais de serem eleitas.
Atento a esse infeliz cenário, o Tribunal Superior Eleitoral passou a olhar mais detalhadamente para as alegações de fraude à cota de gênero (que podem ser veiculadas tanto em Ação de Impugnação de Mandato Eletivo quanto em Ação de Investigação Judicial Eleitoral). Tais reflexões culminaram no julgamento do caso paradigma de Valença do Piauí (RESPE n.º 193-92), a partir do qual foi fixado o entendimento de que, caracterizada a fraude, toda a chapa deve ser cassada (mesmo vereadoras e vereadores eleitos que não participaram da fraude).
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal confirmou e manteve tal entendimento ao julgar a ADI n.º 6338. Como constou na ementa do referido acórdão, é “necessária uma atuação mais energética do Estado para atingir melhores níveis de paridade entre os gêneros”, sendo que a atuação do STF e do TSE “tem sido bastante enfática na necessidade de afastar estigmas históricos, culturais, sociais, profissionais e jurídicos no que diz respeito aos direitos das mulheres”.
Embora o Tribunal Superior Eleitoral tenha, num determinado momento, ponderado que a baixa ou inexistente votação, ausência de prestação de contas e de propaganda eleitoral não seriam suficientes, por si só, para caracterizar a fraude, percebe-se que tais elementos são utilizados com frequência cada vez maior como provas do ilícito.
Por exemplo, no caso (também emblemático) de Jacobina/BA, o TSE reconheceu a fraude considerando elementos como ausência de comprovação de gastos e prestação de contas similar e a inexistência de material de campanha (Respe n.º 0600651-94).
A partir de então, percebe-se um rigor cada vez maior da Corte em relação à violação ao art. 10, §3º, da Lei n.º 9.504/97. Somente nos meses de setembro e outubro, o TSE noticiou 7 decisões reconhecendo a fraude e determinando a cassação dos mandatos de todos os eleitos.
Aliás, o Tribunal Superior Eleitoral já sinalizou que vai editar Súmula específica sobre o tema, demonstrando a crescente preocupação com o assunto, sobretudo no contexto da chamada “PEC da Anistia”, que, entre outras deliberações polêmicas, pretende desobrigar os partidos a lançar um patamar mínimo de 30% de mulheres candidatas. A proposta segue em discussão na Câmara dos Deputados e é alvo de severas críticas.
De qualquer forma, com ou sem discussão da PEC, existem inúmeros questionamentos a respeito dos desdobramentos do posicionamento rigoroso do TSE. Por um lado, a realidade enseja a adoção de medidas cada vez mais drásticas. Mesmo com os avanços legais e jurisprudenciais (como obrigação de destinação de recursos públicos no percentual de candidatas registradas e o incentivo dado pela EC 111/2022, determinando que votos dados a mulheres e pessoas negras contarão em dobro para a distribuição de recursos do Fundo Eleitoral), ainda não há um aumento significativo de mulheres eleitas e tampouco se observa uma real preocupação dos partidos nesse sentido. Na verdade, ocorre justamente o oposto (como a própria “PEC da Anistia” demonstra).
Por outro lado, há quem defenda que o atual entendimento (cassação de toda a chapa) pode subverter a própria lógica do art. 10, §3º, considerando que em muitos casos pode ser retirada do cargo, justamente, uma mulher, legitimamente eleita e sem qualquer relação com eventual ilícito praticado durante o preenchimento das vagas de candidaturas.
Tais ponderações foram mencionadas pela ex-Ministra substituta do TSE, Maria Claudia Bucchianeri Pinheiro, ao proferir seu voto nos Agravos em Recurso Especial n.º 0601556-31.2020 e n.º 0601558-98.2020.
A Ministra defendeu que há uma aplicação quase automática de sanção às partes vulneráveis que a lei objetiva proteger: justamente as mulheres. Pontuou, ainda, que é improvável que o ilícito seja praticado sem o envolvimento dos dirigentes dos partidos, motivo pelo qual defendeu que estes deveriam compor o polo passivo das ações de investigação judicial eleitoral que discutem fraude à cota de gênero. Propôs, também, a possibilidade de declaração de inelegibilidade de quem anuiu ou participou do ilícito. A proposta, contudo, não foi aceita pelos demais membros da Corte, mas certamente é uma discussão que deve ser retomada em algum momento.
Não há solução fácil para o problema, mas a tendência é que o Tribunal Superior Eleitoral continue adotando a política de “tolerância zero” para as fraudes à cota de gênero, o que certamente terá impacto no próximo pleito. Em relação às alterações legislativas, considerando o princípio da anualidade eleitoral previsto no art. 16 da Constituição Federal, nenhuma regra nova pode valer para as próximas eleições.